30 de junho de 2011

reencontros

Terminei a leitura do primeiro romance destas férias: Reencontros da autora Cathy Kelly. À excepção de algumas obras infantis e juvenis, não me recordo de ter alguma vez lido um livro mais do que uma vez. Existem, claro, alguns romances que, pela saudade deixada pelas personagens, pela escrita do autor ou pela experiência proporcionada pela sua leitura, deixam vontade de voltar a ser lidos no futuro. Este é um sério candidato à lista dos livros que gostaria de reler.

As personagens acerca das quais narra a história são mulheres cujas vidas são pautadas por sentimentos que todos nós experienciamos no nosso quotidiano independentemente do acontecimento mais ou menos dramático, feliz ou trivial que está na sua origem. Alegria, tristeza, culpa, remorso, frustração, raiva, dor, arrependimento, perdão, amor, amizade... Fica, acima de tudo a certeza, de que a amizade é um bem precioso, que é nos amigos que encontramos conforto para lidar com a dor e força para lutar contra as adversidades. E é também na companhia dos amigos que melhor sabe deliciarmo-nos com as vitórias, o sucesso e as alegrias.

Contudo, este livro revestiu-se para mim de um significado ainda maior pelo facto de me ter transportado para a minha infância e para os maravilhosos momentos partilhados com a minha avó Teresa.

As páginas que antecedem cada capítulo são excertos do diário de receitas da mãe de Eleanor, uma das personagens, que contém muito mais do que receitas, ensinamentos para a vida de uma mulher do início do século XX que quer transmitir à sua filha muito mais do que a forma de manipular ingredientes ou confeccionar pratos, ferramentas para lidar com os desafios que a vida lhe há-de colocar.

E assim, no início de cada capítulo, cada uma dessas receitas para a vida transportava-me para a minha infância e para as tardes passadas com a minha avó. Quando o tempo estava bom, a minha avó esperava-me na soleira da porta, vendo a vida passar e contemplando os gerânios que adornavam a varanda caiada de branco. No Outono, íamos para o campo recolher lenha para a lareira ou apanhar bolotas e, no Inverno, ali ficávamos junto ao fogo onde na panela de barro coazinhavam lentamente as couves com um bocado de chouriço e carne de porco. Às vezes, a minha avó atiçava o fogo e espavalha umas quantas brasas no centro das quais assava umas castanhas ou umas bolotas. E ali, sentadas nas velhas cadeiras de bunho, iluminadas pelas labaredas, conversámos horas a fio, sem que houvesse uma televisão que nos roubasse a atenção ou um telefone que nos interrompesse. Éramos apenas nós e o crepitar da lenha como ruído de fundo. E a minha avó contava-me então, histórias do outro tempo. Desse tempo em que os habitantes da nossa minúscula aldeia tinham tão pouco. Criavam um porco e algumas galinhas, cultivavam os legumes na horta e amassavam e coziam o próprio pão. Apenas iam à vila muito ocasionalmente, envergando as suas melhores roupas de Domingo. Desse tempo em que a minha avó, em vão, vagueou atrás de médicos e curandeiros que devolvessem à sua filha a saúde que lhe fora tão cedo roubada.

A minha avó Teresa não me ensinou a cozinhar, nem tão pouco a costurar ou tricotar, tarefas que couberam à minha avó Eugénia. Mas, ensinou-me as mais precisosas lições de vida que sempre guardarei na memória e no coração. O que a minha avó me ensinou foram receitas para a vida. Ensinou-me a linguagem do amor e mostrou-me, sem ter de fazer uso das palavras, o que é a generosidade, o perdão e a tolerância.

Não pensem que a admiração imensurável que nutro pela minha avó Teresa reside no facto da sua vida ter sido pautada por perdas, por dor e por sofrimento, nem tão pouco reside no facto de a considerar alguma espécie de heroína que protagonizou tais tragédias com destemida coragem ou audaz bravura. Nada disso. Os dramas que a vida reservou à minha avó foram concerteza os mesmos que acometeram tantas outras pessoas, sobretudo nesse outro tempo tão díficil onde o trabalho, o dinheiro e a assistência médica eram bens tão raros e tão longíquos para as gentes da nossa terra. E a forma como lidou com eles foi exactamente a mesma utilizada por todas essas pessoas: com lágrimas, tristeza e sem muitas vezes conseguir encontrar na vida algo que lhe devolvesse a vontade de sorrir, de viver...

A admiração que nutro pela minha avó tem a ver apenas, com o facto de nunca, nem uma vez a ter visto impacientar-se comigo por mais travessa que eu me mostrasse, nem uma única vez a ter ouvido proferir alguma palavra marcada por rancor dirigida a quem quer que fosse que a tivesse ofendido ou magoado, nem uma única vez ter presenciado da sua parte algum julgamento a quem quer que pudesse eventualmente ter falhado ou agido de forma errada.
A admiração que dedico à minha avó Teresa e que faz dela o ser humano mais maravilhoso que alguma vez conheci, tem tão simplesmente a ver com o fato de nenhuma perda, por mais terrível que fosse, nenhuma doença por mais que molestasse, nenhuma ofensa por mais mordaz que se anunciasse, lhe terem alguma vez endurecido o coração e lhe terem alguma vez abalado a sua inesgotável capacidade para amar, perdoar, dar e partilhar, com quem quer que precisasse, o pouco que ela tivesse.

19 de junho de 2011